Operação Contenção: As Três Dimensões do Ambiente Operacional no Século XXI
- Fernando G. Montenegro

- há 2 dias
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Operação Contenção

A Operação Contenção, deflagrada em 28 de outubro de 2025 no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, mobilizou cerca de 2.500 policiais e resultou em mais de 60 mortes, configurando-se como uma das ações mais intensas contra o crime organizado na história recente da cidade. Essa operação não pode ser analisada apenas sob a ótica policial tradicional, mas sim como um confronto que expõe as três dimensões do ambiente operacional do século XXI – física, informacional e humana – em um contexto de violência armada não estatal que desafia o monopólio da força pelo Estado.
Conforme preconiza o Manual de Campanha EB20-MC-10.213 – Operações de Informação, do Exército Brasileiro, toda ação policial ou militar deve perseguir ininterruptamente a legalidade (conformidade com leis e normas), a moralidade (respeito aos princípios éticos e aos direitos fundamentais) e a legitimidade (aceitação pela população e respaldo institucional). Esses pilares não são meros adornos burocráticos: eles interagem diretamente com as dimensões operacionais. Na dimensão física, a legalidade orienta o uso proporcional da força, evitando excessos que violem normas constitucionais; na informacional, a moralidade impede a manipulação de narrativas ou a disseminação de desinformação, preservando a verdade como base ética; na humana, a legitimidade é o oxigênio que mantém o apoio popular, transformando ações coercitivas em operações aceitas pela sociedade. A Operação Contenção ilustra como a busca por esses valores pode fortalecer ou comprometer o sucesso estratégico, especialmente quando comparada à Operação Arcanjo (2010-2012), que envolveu BOPE, blindados da Marinha e ocupação prolongada do Exército, com cerca de 2.000 operacionais do Exército, mais 250 na logística, 150 policiais militares e 50 policiais civis, além do acompanhamento de perto do Ministério Público Militar.
A Dimensão Física: Inteligência, Terreno e Preservação de Vidas
O planejamento da Operação Contenção foi exemplar ao deslocar o confronto principal para o alto da Serra da Misericórdia, uma área elevada e menos povoada, evitando o envolvimento direto de civis nas zonas residenciais densas abaixo. Essa manobra reflete estudo minucioso do terreno – vielas estreitas, barricadas de concreto, pontos de observação elevados – e uso intensivo de inteligência prévia, incluindo mapeamento aéreo e infiltração de agentes. Relatos da imprensa, como os do O Globo e Folha de S.Paulo, confirmam que drones de vigilância do Comando Vermelho foram neutralizados ainda na fase inicial, assim como artefatos explosivos improvisados (IEDs) adaptados para lançamento aéreo – uma sofisticação tática que demonstra o nível de armamento das facções.
A progressão policial foi cautelosa, com emprego de escudos balísticos, fuzis de precisão e veículos blindados em pontos estratégicos. Essa contenção evitou o caos generalizado que marcava operações anteriores, preservando centenas de vidas civis. A legalidade foi mantida pelo uso proporcional da força: apenas alvos armados foram engajados, conforme protocolos da Polícia Civil e do BOPE, com registros de confrontos limitados a posições criminosas. A moralidade se manifestou na evacuação prévia de moradores e na criação de corredores humanitários, evitando danos colaterais desnecessários. A legitimidade foi reforçada pela percepção de que o Estado agiu para proteger, não para punir indiscriminadamente, com ações que minimizaram impactos em áreas não governadas (black spots), onde o monopólio da força estatal havia sido rompido.
A pandemia de COVID-19 agravou essa dimensão: a ordem do ministro Fachin, atendendo à solicitação do Deputado Federal Alessandro Molon (PSB), através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)nº635, restringiu e burocratizou operações policiais em áreas de controle territorial armado das gangues, levando à expansão dessas zonas, fortalecimento das facções e delimitação mais ostensiva de territórios. Especialistas já alertavam que a retomada exigiria desgaste físico maior, com confrontos mais intensos – exatamente o que ocorreu na Operação Contenção. Cabe cobrar responsabilidade por decisões que criaram vácuos de poder, permitindo o retorno de black spots.
Na Operação Arcanjo, foi desencadeada na última semana de novembro de 2010, de forma improvisada, a partir de uma onda de violência determinada pelo Comando Vermelho, devido à transferência de lideranças para presídios de segurança máxima do Governo Federal. A dimensão física foi dominada com sucesso durante a ocupação: blindados da Marinha, BOPE e tropas do Exército garantiram o controle territorial por quase dois anos, empregando aproximadamente 2.000 operacionais do Exército, mais 250 militares na logística, 150 policiais militares e 50 policiais civis, sob acompanhamento próximo do Ministério Público Militar para assegurar legalidade em cada fase. A população circulava livremente, com redução drástica de tiroteios. No entanto, a saída das forças federais em 2012 e a substituição pelas UPPs – sem equipamentos adequados, treinamento contínuo ou blindagem jurídica para os policiais – criaram um vácuo. A insegurança jurídica, com decisões judiciais que limitavam abordagens preventivas, aliada à falta de investimento em viaturas e armamento, permitiu a retomada gradual do território pelo Comando Vermelho. O que era um terreno conquistado voltou a ser um black spot – área não governada onde o Estado perdeu o monopólio da força, ilustrando a ruptura paradigmática da era da informação, com atores não estatais desafiando a ordem vestfaliana.
A Dimensão Informacional: Narrativa, Violência e Controle Social
A dimensão informacional é o campo de batalha onde se disputa a percepção da realidade. O Manual EB20-MC-10.213 define operações de informação como “o emprego integrado e coordenado de capacidades para influenciar, perturbar ou corromper a tomada de decisão do adversário, enquanto se protege a própria”. Na Operação Contenção, a imprensa teve papel ambíguo: enquanto veículos como G1 e CNN Brasil destacaram a brutalidade do Comando Vermelho – execuções com motosserra, corpos dissolvidos em ácido, crianças recrutadas como “aviõezinhos” –, outros setores da mídia tenderam a humanizar criminosos, focando em “jovens periféricos” sem mencionar o controle social imposto. Visando humanizar e dar um aspecto menos bélico dos bandidos que morreram no enfrentamento à polícia, “moradores” removeram corpos da mata, retiraram as roupas camufladas, botas, armas e coletes à prova de balas. A legitimidade passa a ser questionada por imagens de policiais feridos e criminosos mortos, sem contrapartida de presença estatal pós-operação.
Esse é um conflito armado não internacional, em que grupos fortemente armados, com dezenas de bandidos, se deslocam dentro da cidade; não se enquadra na Constituição Federal (art. 5º), nem nas Convenções de Genebra pós-Segunda Guerra Mundial e protocolos adicionais de 1977 (após descolonizações na África), nem no regime de direitos humanos surgido para proteger populações civis desarmadas – como no massacre de judeus pelos nazistas. Aqui, tratava-se de bandidos armados reagindo à intervenção policial legítima. A moralidade exige que a imprensa exponha essa realidade: gangues que torturam, estupram e matam para manter o poder local, sem cair na armadilha da humanização que legitima a violência. A legitimidade depende de narrativas que mostrem o Estado como protetor, não opressor, utilizando operações de informação para contrapor a propaganda criminosa. Como comenta o professor Steven Pinker, de Harvard, em sua obra “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, os lugares mais seguros do mundo são os países democráticos onde o Estado detém o monopólio exclusivo do uso da força. Ou seja, quanto mais essa ideia for reforçada na dimensão informacional, mais segurança jurídica e liberdade de ação as forças de segurança terão para promover a retomada dos territórios.
Na Operação Arcanjo, a gestão informacional fez toda diferença, com o acompanhamento do Ministério Público Militar garantindo transparência. No cenário político da época, o governo federal e a maior parte dos veículos de comunicação tinham máximo interesse em legitimar o sucesso da operação: precisavam passar à opinião pública internacional que o Rio tinha condições de garantir segurança para megaeventos – Copa do Mundo (2014), Jogos Olímpicos (2016), Jogos Mundiais Militares (2011), visita do Papa etc. Havia consenso político para atrair verbas e recursos para infraestrutura, boa parte, possivelmente superfaturada para financiar campanhas de políticos. A mídia nacional alinhou-se: imagens de blindados hasteando a bandeira brasileira, soldados jogando futebol com crianças, moradores aplaudindo. Mortos e feridos do lado criminoso foram minimizados; prisões, celebradas. Não houve interesse em investigar quem eram os “bandidos mortos” – a narrativa política era de vitória. Essa operação de informação, integrada aos 2.000 operacionais do Exército e apoio logístico, garantiu legitimidade internacional e apoio interno; mas a descontinuidade de esforços governamentais após a saída do Exército e interferências do judiciário com ADPF 635 e a corrupção do nível político mascararam a fragilidade estrutural que levaria ao colapso posterior.
A Dimensão Humana: Cultura, Funk e Glamourização do Crime
A dimensão humana é essencial no conflito: pessoas, valores, motivações. O Comando Vermelho explora vulnerabilidades culturais para perpetuar seu domínio. O funk proibidão é arma poderosa: letras fazem apologia ao tráfico (“hoje eu vou de AR-15 na pista”), desmoralizam a polícia (“o caveira vai tomar”), estimulam promiscuidade sexual como status (“as novinha do CV tão no corre”) e criam glamour em torno do crime. Artistas que lucram milhões com shows em bailes financiados pelo tráfico transformam bandidos em ídolos, vitimizando-os como “guerreiros da comunidade”.
O Comando Vermelho exerce controle social por meio de toques de recolher forçados, proibição de festas em datas específicas, extorsão de comerciantes e recrutamento de adolescentes. O controle político se dá pela cooptação de associações de moradores, imposição de candidatos políticos, financiamento de eventos comunitários e ameaças a lideranças que se opõem. Economicamente, o domínio territorial permite monopólio da venda de gás, internet pirata, cargas roubadas, cigarro contrabandeado, TV a cabo clandestina e, claro, o tráfico – com faturamento estimado em dezenas de milhões por mês apenas no Complexo do Alemão.
Esse fenômeno deteriora a coesão social: jovens veem no crime uma opção mais fácil de ascensão naquela micro sociedade; famílias perdem autoridade; valores como estudo e trabalho são ridicularizados. A imprensa, ao dar espaço a funkeiros que defendem “liberdade de expressão”, ignora que essas letras são propaganda armada. A moralidade exige combate cultural: apoio a artistas independentes, educação midiática, reforço de valores familiares. A legalidade impõe que o Estado atue dentro da lei para desmontar essas redes, sem violar direitos com critérios claros.
Na Operação Contenção, a dimensão humana foi impactada positivamente pelo planejamento físico – menos civis no fogo cruzado – mas negativamente pela ausência de percepção de ações sociais paralelas.
Em Arcanjo, com 2.000 operacionais do Exército, 250 em logística, 150 PMs e 50 PCs sob supervisão do Ministério Público Militar, a ocupação trouxe serviços: postos de saúde, cursos profissionalizantes, iluminação pública. Pela primeira vez em décadas, qualquer pessoa podia entrar e sair da comunidade sem medo e não havia vendas ostensivas de drogas ao ar livre. Mas a falta de prioridades dos governos seguintes em manter as conquistas não proporcionou às forças de segurança que permaneceram no terreno a capacidade de manter essa conquista humana. Sem continuidade, o vácuo foi preenchido pelo medo, pelo funk, pelo tráfico.
Comparação e Desdobramentos: Lições e Riscos
A Operação Arcanjo foi uma vitória tática, operacional e estratégica temporária: domínio físico com força massiva e supervisão jurídica, narrativa controlada, ganhos humanos. Mas falhou na sustentabilidade – falta de equipamento para UPPs, insegurança jurídica, ausência de plano de longo prazo. A Operação Contenção supera em precisão tática e preservação de vidas, mas repete erros: ausência de ocupação prolongada, risco de retaliação, dependência de megaoperações pontuais. Os resultados momentâneos na dimensão física são altamente positivos, mas as percepções de legitimidade e moralidade serão definidas pelos eventos que ocorrerão nas dimensões informacional e humana deste ambiente operacional.
Desdobramentos possíveis: migração do CV para outras favelas (como já ocorre na Zona Oeste), guerras entre facções (CV versus TCP), aumento de homicídios por vingança.
Economicamente, o crime se reinventa com fraudes em seguros (seguros falsos para lavar dinheiro), empréstimos fraudulentos (via agiotas), hipotecas ilegais (financiamento de imóveis com origem espúria). O Estado precisa de presença permanente: bases integradas, inteligência comunitária, investimento social.
A legalidade, moralidade e legitimidade devem guiar cada fase, interagindo com as dimensões para romper o ciclo de "black spots". Sem elas, vitórias físicas viram derrotas humanas; narrativas informacionais se dissipam; o ciclo recomeça.
A Operação Contenção é um alerta: o Brasil vive uma ruptura paradigmática, com atores não estatais competindo pela soberania em múltiplas esferas. Reforçar o monopólio estatal da força, como defende Pinker, é essencial para segurança duradoura. O Estado precisa de doutrina atualizada, forças preparadas para conflitos assimétricos e vontade política para ocupar não só o terreno, mas a mente e o coração da população.
Fernando G. Montenegro
Qualquer Missão
Em Qualquer Lugar








Excelente artigo. Análise fundamentada na experiência de quem já participou de Operações de Pacificação na mesma área operacional da operação de contenção do dia 28 out 2025.